23 de nov. de 2020

A caça à raposa



A caça à raposa

 

Sinopse: Apesar de conhecer Kurama há algum tempo, o time Uramesh ainda tem perguntas não-respondidas sobre o seu amigo.

Aviso: Os personagens de Yu Yu Hakusho são de propriedade de Yoshihiro Togashi. Essa fanfic não tem fins lucrativos, sendo somente para entretenimento. Plágio é crime. 

Minha primeira fanfic e não sei ainda se será a última sobre Yu Yu Hakusho. Também disponível no Fanfiction.

 

Passando uma chuva

 

 

19:00. Templo de Genkai.

Genkai estava na cozinha preparando chá, com a ajuda de Yukina e Keiko.

Após incluir as meninas como herdeiras de suas terras e do Reikohadouken, Genkai passou a treiná-las, embora algumas não preenchessem todos os requisitos.

“Ninguém imaginava, mas elas estão indo muito bem. Shizuru já consegue formar um nunchaku* a partir de sua energia, Yukina consegue criar barreiras de gelo e congelar os oponentes, Botan aprimorou suas técnicas de cura espiritual. E Keiko, embora ainda não tenha energia espiritual, está me surpreendendo com sua força física. Ela deve ter algum tipo de trava mental que não permite que ela usufrua de poderes espirituais, já que a menina possui todas as características de uma boa lutadora sobrenatural. Yusuke e Kurama fizeram bem em pedir para incluí-la nos treinos. Em último caso, será uma boa administradora do templo e das terras”.

Na sala principal, após uma tarde de treino nas terras de Genkai, debaixo de muita chuva, o antigo time Urameshi, agora na faixa etária entre 20 e 23 anos e acrescido das garotas, descansava antes de cada um retornar às suas casas.

— Mas tinha que chover tanto? Assim fica impossível curtir o resto da noite — Yusuke olhava as gotas de chuva escorrer pela janela.

— Não reclame, Urameshi. Sempre lutamos debaixo de sol. É bom variarmos se quisermos realmente ser fortes. E vimos que as lutas no terreno molhado são muito mais difíceis — Kuwabara falou irritado.

— Exatamente. Temos que estar preparados para qualquer eventualidade. Esses anos foram calmos, mas nada garante que o próximo rei do Mundo das Trevas seja tão pacífico quanto Enki — declarou Kurama, pragmático.

— Eu sei, mas seria bacana aproveitar o resto da noite de outra forma. Mas a estrada está intransitável — ainda reclamou Urameshi, que tencionava passar o fim da noite com sua noiva Keiko.

Yusuke ia bem com seu negócio de venda de lámen, era querido pelos sogros, a sua mãe era a favor da união, mas ele e Keiko estavam esperando a formatura da garota para casarem. Seria mais do que tempo suficiente para ele se estabilizar melhor nos negócios, já que era rico no Mundo das Trevas, mas pobre no Mundo dos Humanos.

— Dessa vez, terei de concordar com Kuwabara. Não podemos nos acomodar. Não serão apenas os mesmos a participar do próximo torneio. Além de Yomi e outros já estarem se preparando, eu soube que muitos do interior do Mundo das Trevas, e que não conhecemos, também vão participar. Parece que só não participaram do primeiro torneio porque só souberam depois que acabou — Hiei disse enquanto olhava para a chuva que não parava de cair, enquanto pensava na imensidão do Mundo das Trevas e o que tinha deixado lá. E o real motivo de ter de vencer o torneio.

— Querem chá?

Yukina ofereceu, mas sem esperar resposta, já entregava uma xícara a cada um da sala.

— Vocês estão muito sérios. A chuva não é o fim do mundo, sabiam? — Keiko declarou enquanto olhava todos os garotos.

— E que culpa eu tenho se aqui não tem sinal de internet e eu já estou enjoado dos jogos? Vou perder o episódio de Youkai’s Anatomy — reclamou Yusuke, enquanto na realidade pensava: “Eu podia estar sozinho com você agora”.

— Lutar por horas a fio não é bom para os músculos das meninas que não estão tão acostumadas. Pena que eu não trouxe o baralho, mas seria mesmo legal ver Luka. A personagem dela é uma das enfermeiras, né? — Kuwabara falou desanimado, enquanto no momento tentava se apegar a qualquer assunto.

Luka tinha deixado o seu trabalho de enfermeira no Mundo das Trevas e foi chamada para ser consultora da série de TV, mas um dia substituiu uma das atrizes que tinha faltado e acabou fazendo parte do elenco principal, junto com Shishiwakamaru.

— Pois é. E o galãzinho do Shishiwakamaru agora tem muito mais fãs do que antes. Deve estar mais metido, aquele presunçoso — apesar das palavras, Yusuke tinha uma pequena admiração pelo espadachim de cabelos lilases, depois de saber de Genkai e de Kurama o quanto era habilidoso com a espada, além de ter visto com seus próprios olhos no torneio da unificação do Mundo das Trevas.

Hiei viu o rosto contraído de Keiko e disse:

— Estamos só entediados. Não se preocupe, Keiko.

Apesar das palavras ditas, a fisionomia de Hiei era tensa.

— Já que é assim, contem as suas histórias. Hiei deve saber de muita coisa interessante — Shizuru falou, enquanto soltava a fumaça do cigarro.

— É só impressão de vocês.

— Qualé? Técnicas de roubar, enganar... Isso é muito pedagógico! — Shizuru deu uma piscadela para Hiei.

— Já disse. Não há o que contar. Não sou professor para ser “pedagógico”.

Hiei olhou para Shizuru sem entender se ela estava brincando ou falando sério. E como Yukina estava presente, não queria que a princesa de gelo soubesse o que já fez até pouco tempo.

“Se Yukina (ou essas doidas) quiser ser má, que seja por conta própria. Não serei o responsável por isso”.

— Então, Kurama, nos conte algo de você — Botan sugeriu.

— Eu? Vocês me conhecem. Minha vida é tão sem graça quanto piada velha.

— Ah! Que nada. Você deve saber de muita coisa.

Keiko resolveu ajudar a amiga:

— Verdade. Kurama nunca fala de si mesmo. Eu estou muito curiosa sobre você.

— Tá assanhadinha, hein? Que tal ser curiosa sobre mim? — Yusuke chamou a atenção da noiva, com fingido ciúme.

— Mas todos nós já sabemos que você é idiota. Não há nenhuma novidade nisso.

— Como é que é?

Para evitar mais uma briga entre o casal, Kurama resolveu ceder. Embora suspeitasse que aquelas brigas eram armadas e apreciadas pelos dois para a relação não cair na monotonia.

— Ok! E o que vocês querem saber? Mas não posso prometer nenhuma história bonita e feliz.

Botan nunca iria revelar que já tinha lido os relatórios da vida de cada um dos presentes, mas o relatório sobre Kurama era cheio de lacunas e isso a enchia de curiosidade. Até citava um romance platônico por alguém chamada Maia, mas não trazia detalhes. Seria agora ou nunca. Mas também não adiantaria fazer muitas perguntas de uma só vez, pois iria assustar o ruivo. E todas as raposas eram fugidias.

— Por que você foi caçado? O Esquadrão Especial de Defesa só caça youkais de classe A que tenham cometido crimes graves aos humanos ou ao Mundo Espiritual. Você já esteve no Mundo dos Humanos antes de se tornar Suichi? — Botan perguntou como quem não queria nada, enquanto bebia o chá oferecido por Yukina, e que era feito de várias ervas, principalmente artemísia — Que chá horrível de amargo! Blergh!

— Todas vocês devem beber se quiserem sobreviver aos treinos — Genkai tinha acabado de entrar na sala, mas já acompanhava a conversa antes mesmo de chegar.

Shizuru estava intrigada e perguntou ao baixinho da equipe:

— Por que vocês chamam o Esquadrão Especial de caçadores das trevas?

— Aqueles idiotas presunçosos nos veem como animais.

— O fato de muitos serem irracionais e possuir formas de animais, e a rivalidade entre os seres dos dois mundos também não contribui para nos tratarmos de uma forma melhor — Kurama logo esclareceu.

Yukina não ia deixar o assunto ser esquecido.

— Nos conte sobre você, por favor. Deve ter tido muita aventura, heroísmo, mistérios...

— Imagina! Heroísmo? Eu era um ladrão e era dever do Esquadrão caçar bandidos. Só isso. Nada demais.

— Será que a história do ruivo tem alguém caliente, que tenha conquistado o coração do frio Youko e que envolva tórridas noites de amor? E ele não queira compartilhar com a gente? — Shizuru comentou para desespero de Kuwabara, e muitas risadas de Kurama e Yusuke.

— Você não respeita a mestra, maninha? 

— Até parece que vou ficar chocada com algo assim. Hunf! — Genkai surpreendeu Kuwabara — Mas conte, Kurama. É o tempo da chuva passar e eu me livrar de vocês.

— Vocês tem muita imaginação fértil! Eu era apenas um ladrão, com uma história triste e sem final feliz. Nada agradável.

— Tipo uma história de terror ou suspense? — Yusuke finalmente tinha se interessado.

— Eu também quero ouvir — Kuwabara se sentou perto de Yukina.

Se a dama de gelo tivesse medo ou susto, poderia procurar consolo em Kuwabara.

— Por favor! — Keiko, Shizuru, Yukina e Botan pediram em coro.

Kurama nunca tinha gostado de falar de si mesmo, mas como sempre recebeu total confiança do grupo, e já tinha ouvido a história da maioria ali, achava justo compartilhar uma pequena parte de sua vida a eles. Mas ainda estava receoso com a presença de Yukina, que despertava em todos um sentimento de proteção. Hiei percebeu sua hesitação e deu de ombros, mas falou telepaticamente: “Um dia ela terá de crescer de qualquer forma; só toma cuidado com as palavras”.

Genkai também tinha percebido e declarou em voz alta:

— Ela é mais forte do que aparenta. E tem de estar preparada para tudo.

Até Kuwabara, que era o mais lento da turma, notou a hesitação e perguntou de forma telepática:

“O que houve?”

“A história é pesada. Minha antiga vida pode assustar a sua princesa”.

“Ela saberá filtrar. Ela já viu muita coisa ruim, tanto no Mundo das Trevas, quanto aqui. Não se preocupe. Ela não é idealista como Sensui”;

Com essas palavras, Kurama se sentiu mais corajoso.

— Essa história tem um pouco de mistério como Yukina previu e quanto ao resto é vocês que decidirão. Tudo começou com uma das plantas que faz este chá: a artemísia.

Todos se acomodaram para ouvir melhor. Somente Hiei e Genkai ficaram distantes, mas atentos.

  



Absinto e veneno

 

 

A última vez que vim ao Mundo dos Humanos foi no início do século XX, na Belle Époque. Um pouco antes da Primeira Guerra. Ainda no Mundo das Trevas, fiquei sabendo de uma poção mágica, chamada Absinto*, que dava poderes extraordinários a quem a ingerisse. Fiquei curioso sobre a fórmula e como eu poderia usar em benefício próprio.

Na época, o Mundo Espiritual classificaria o meu poder como sendo de Nível B, por isso era fácil trafegar entre os dois mundos. As raposas podem possuir corpos, ou copiar a aparência de uma pessoa ou objeto, mas preferi simplesmente me misturar aos humanos, pintando o cabelo e camuflando a minha orelha e a minha cauda. Simples e sem necessidade de gastar muita energia. Quem me olhasse, acharia que eu era um humilde botânico.

Segundo as informações que tinha, a poção era encontrada na França, país muito conhecido por suas lendas e magias, mas eu não seria a pessoa que sou, se não fosse cético a tudo o que contam. Foi sem surpresa que achei a poção em um cabaré, e descobri que na verdade era um licor muito alcoólico, a ponto de quem o bebesse achar que tinha encontrado sua musa criativa, se achar invencível, e criar mil histórias, uma mais surpreendente que a outra. A maioria que bebia do Absinto, o nome da bebida, tinha já uma grande criatividade latente para as artes, mas não tinha autoconfiança. Uma pena, pois enquanto estava naquele cabaré, ouvi muitas histórias e músicas excelentes, mas que eram esquecidas ou menosprezadas após o efeito da bebedeira passar.

Soube através de um garçom que a origem da bebida tinha sido um remédio, e qual a planta usada na bebida (a artemísia), mas eu tinha que saber maiores detalhes, fosse para criar ilusões nos inimigos, para envenená-los ou para curar aliados. Se as minhas suposições estivessem corretas, aquela planta poderia ter diversos usos. A losna ou artemísia parecia ser poderosíssima. Se fosse cultivada no Mundo das Trevas, poderia ser muito mais potente do que no Mundo dos Humanos.

Enquanto pensava a respeito, senti um youki perto. Youkais na França? Não era muito comum já que as entradas entre os dois mundos sempre eram próximas do Japão. Eu já estava escondendo o meu próprio youki, mas fiquei ainda mais alerta. Mas não saí dali. Nunca tinha sido de fugir de luta. Queria saber o que tinha levado outro youkai para tão longe.

Ao meu lado, estavam dois clientes conversando:

— Está sabendo que dois frequentadores assíduos daqui morreram envenenados nas últimas semanas? Estou achando que essa será minha última noite aqui.

— Está com medo?

— E não é para estar?

— Claro que não! Deve ter sido assalto.

— Mas não levaram dinheiro.

— E eram casados?

— Eram.

— E acaso você é casado?

— E perder minha liberdade? Não sou tolo a esse ponto.

— Se você é solteiro, não tem o que temer. As esposas dos idiotas devem ter sabido das escapadas deles. Os idiotas nem deveriam saber manter as coisas em segredo. Isso pode acontecer em qualquer bar.

— Mas não era mais fácil elas brigarem e quebrarem tudo?

— E perder o dinheiro deixado pelos maridos? É claro que não! Se elas foram traídas, é melhor elas se livrarem deles e tirarem proveito da situação.

— O seu modo de pensar me dá medo.

— É claro que também pode ter sido acidente.

— Eu não sei... Foram em horários diferentes, mas pelo que li, eles não trabalhavam com nada que envolvesse venenos.

— O mais provável é que você seja o maior covarde da história. Casando ou não, melhor você nunca ter filhos, para eles não puxarem a você.

O segundo cliente ria do companheiro que puxou o assunto e que tinha ficado com vergonha por realmente ser temeroso.

 

Então o ponto em comum entre os homens assassinados é que eram casados e foram mortos com veneno. Só isso, mesmo? O veneno sempre foi conhecido como a arma mais usada por traidores e ninjas, pois não chamava a atenção, e alguns eram difíceis de ser identificados. Mas que tipo de veneno foi usado? Nada daquilo me envolvia, mas eu sempre fui curioso e aquela energia presente me deixava ainda mais alerta.

Eu estava ponderando sobre tudo isso quando vi uma dançarina oriental muito linda e que aparentava ser completamente humana.

Uma boa forma de obter informações é passar despercebido, mas ser amigável. Fingindo uma desilusão amorosa, fiz amizade com o garçom, que logo me conseguiu uma garrafa do licor e ainda me falou da garota:

— Linda, né? O nome dela é Harumi e é nova aqui. Se quiser um encontro com ela tem que falar com o gerente, mas será difícil. Ela é muito procurada e cara, mas já tem alguns clientes fiéis. Sabe como é.

— Não se preocupe, amigo. Só de olhar, já sei que meu dinheiro não me permite nem mesmo alguns minutos com ela. Tenho certeza que ela poderia curar minha solidão e minha dor-de-cotovelo, mas é melhor me contentar com a bebida.

Ri um pouco com o garçom e observei a apresentação como um cliente qualquer. Quando o show acabou, e a moça e outras dançarinas saíram de cena, o youki também desapareceu. Como seria possível ter um youki ali presente se todas elas eram humanas?

Rumei para o hotel, onde estava hospedado com nome e documentos falsos. Apesar de já ter obtido uma amostra do licor, eu já tinha me programado para permanecer mais alguns dias, a fim de obter maiores informações da planta e, assim, fazer minhas próprias pesquisas e testes de forma segura. No entanto, eu tinha um novo motivo para permanecer no Mundo dos Humanos. Se o Mundo Espiritual soubesse que havia youkais em outras regiões do Mundo dos Humanos, eles poderiam colocar mais restrições no Mundo das Trevas, aumentar mais ainda a segurança da barreira ou mesmo iniciar uma guerra para proteger os humanos. E isso poderia me prejudicar. Era melhor eu saber o que estava realmente acontecendo e evitar o pior.

 

No dia seguinte, enquanto ia a uma biblioteca, comprei também o jornal que falava nas duas mortes naquele bairro boêmio. Segundo a matéria, as vítimas foram mortas pelo veneno de uma cobra, mas não sabiam determinar ainda a espécie e nem sabiam explicar como haveria cobras no local. As possibilidades de latrocínio e de acidente já estavam descartadas.

Naquela noite voltei ao cabaré para obter maiores informações e novamente senti o youki.

Quando o recinto fechou, eu fiquei escondido, mas próximo dali. Em uma janela, senti novamente a energia maligna e vi o vulto de um homem tendo uma discussão com a linda japonesa. Subi em um prédio em frente, me aproveitando que a noite me escondia perfeitamente. Devido a minha audição e a minha leitura labial, soube o que estavam conversando.

— Eu não te entendo, Pierre. Eu te dou prazer, desmarquei com todos os outros para ser apenas sua, e você está terminando tudo comigo?

Pardon, mon cher Harumi, mas a minha intenção era unicamente beber e esquecer a minha vida monótona. Nunca tinha sido enganar a minha noiva. Você é linda, é maravilhosa, mas eu tenho um compromisso com ela. Eu sei que fui fraco em vir até aqui de novo, que eu poderia simplesmente nem aparecer, mas não quero mais ser canalha, nem com você e nem com ela.

— Tudo é somente questão de compromisso? É só desfazer o noivado, então.

— Não posso. Eu a amo e não suporto magoá-la.

— Você não pode ficar comigo até o amanhecer?

— Não. Pensando melhor, nem era para eu ter vindo.

O rapaz estava tentado, mas queria permanecer firme com a sua decisão.

— Então eu só presto para um passatempo e nada mais? Vai me largar assim, mesmo me chamando de “mon cher”? Eu pensei que eu significava algo mais para você.

Briga de casal é tão chato. Nunca gostei disso, mas o youkai estava presente ali. E eu nada podia fazer naquele momento, com humanos presentes e correndo risco. Se o fizesse, ia chamar a atenção do Mundo Espiritual da pior forma. Eu teria que ficar escondido ali por mais um tempo.

— Bem... Se é assim, não vou tomar mais de seu tempo e nem falarei mais de um relacionamento. Mas se você quiser, a gente se vê amanhã num relacionamento puramente profissional — a garota sorriu como uma harpia sedutora brincando com o seu alvo.

O rapaz murmurou um adeus gaguejante, aturdido que a aventura amorosa tenha tido um final fácil, mas, ao chegar na rua, levou a mão à nuca. Deu alguns passos cambaleantes e caiu. Ele tinha sido atingido por algum tipo de dardo.

Harumi espiava da janela. Sorriu vingativa e fechou a janela.

Fui até o homem caído. Não era um dardo, mas uma garra. Movi-o para o hotel, que ficava a algumas quadras dali, e fiz com que aspirasse uma planta que neutralizava temporariamente vários tipos de venenos, mas eu precisava do antídoto. Se ele morresse, com certeza, não demoraria para o Mundo Espiritual mandar um de seus espiões.

Voltei ao endereço do cabaré. Pelo lado de fora, subi até o quarto da moça chamada Harumi e consegui abrir a janela.

— Quem é você? Me desculpe, mas se for ladrão, perdeu seu tempo. Não guardo dinheiro comigo. E nem atenderei mais nenhum cliente hoje, caso esteja pensando em conseguir outra coisa.

— Eu é que pergunto “quem é você?”. Desde quando unhas lançam venenos?

Perguntei enquanto eu mudava para a minha forma youkai.

— Ah... Então é um youkai raposa. O que um youkai como você está fazendo aqui?

— Me responda antes quem é você e qual o motivo de você ter possuído o corpo de uma humana.

— Isso não te interessa. Só basta saber que irá morrer.

A mulher levantou sua mão em minha direção, se preparando para me atirar suas unhas, tão grandes quanto garras.

Eu tinha percebido que ali eram dois seres diferentes. E eu não queria colocar a vida de um inocente em risco. De um dos bolsos tirei um pequeno embrulho e arremessei contra a mulher, enquanto me desviava de suas unhas envenenadas. Do pequeno embrulho saiu uma fumaça fedorenta, que ardia os olhos e impedia qualquer youkai de respirar, enquanto possuísse o corpo de um humano. O youkai foi obrigado a abandonar a jovem e a se materializar em uma Kiyohime*, uma youkai bonita, mas com presas de serpente e pele escamosa. Sua história era conhecida: já tinha sido humana, mas fora rejeitada por um monge, que tinha preferido manter seus votos, entre eles, o celibato. Conseguiu virar uma youkai e desde então, por vingança, destruía relacionamentos, matando os homens em seguida.

A humana Harumi tinha caído desmaiada.

— Se cansou de destruir lares no Mundo das Trevas para ter que vir ao Mundo dos Humanos?

— O que eu faço não é da sua conta.

— Se for para destruir o nosso mundo, é da minha conta, sim.

Lancei meu Rose Whip para cortar sua cabeça, mas ela era rápida também e se desviou. Mesmo assim foi cortada em duas, mas logo se refez.

“Droga. Ela é uma cobra com poderes de regeneração. Não vai ser tão fácil”.

A kiyohime esguichou veneno de suas presas. Embora eu tenha conseguido me desviar, o veneno tinha acertado a jovem Harumi.

Eu não podia me deixar arranhar e nem ser atingido pelo veneno, por isso, joguei nela folhas que se transformaram em shurikens*. Essas folhas têm em sua seiva veneno suficiente para matar um cavalo, mas só pegaram de raspão naquela víbora, o que pelo menos tornou a kiyohime mais lenta. Tirei do cabelo uma folha dividida em três, que logo se tornou em uma sai* e arremessei contra a cabeça de minha oponente, acertando-a em cheio.

Extraí o veneno de suas unhas antes que a youkai se dissipasse. Esse tipo de youkai, ao morrer, se evapora em poucos minutos, deixando como único rastro o seu cheiro. Por sorte, o que extraí dava para criar o antídoto para as suas duas vítimas.

Fui em direção à garota que já tinha acordado, porém, estava muito fraca, a ponto de não conseguir andar.

Tirei do cabelo a mesma erva que dei ao homem minutos antes, e a machuquei entre os dedos para sair os gases que paralisariam o veneno, já que o antídoto demorava a ser feito, mas ela não aceitou.

— Não quero. Já é tarde para mim.

— Não fale, apenas inale.

— Eu convivi muito tempo com ela. O veneno já estava em meu corpo. Só não morri antes porque a própria youkai era imune e isso, se alguma forma, me protegia. Você já me salvou ao me libertar da serpente. Muito obrigada. Fiz mal a tanta gente. Será melhor assim.

Apesar de suas palavras, eu a forcei a cheirar a folha. Logo após, a jovem parou de se mover.

Por ironia, no beco encontrei Shunju, enquanto levava aquela moça ao hotel, para poder criar o antídoto.

Ele tinha sentido a energia da serpente, mas como só viu a mim e a mulher inconsciente, pensou que a energia maligna era minha e eu era o assassino da moça.

— Agora você virou assassino de humanos, além de ladrão. Sabia que um dia faria algo assim. Nunca fui mesmo com a tua cara.

— Você não está meio longe de sua jurisdição?

Ele tentou me perseguir, mas fugi levando a mulher e consegui me esconder. Minha sorte é que Shunju não podia realmente me caçar no Mundo dos Humanos. O Mundo Espiritual é cheio de regras e burocracias, e Shunju é do tipo que as segue. Se ele conseguisse me prender naquele momento, eu estaria perdido, mas como eu tinha escapado, ele não poderia mais me caçar, somente quando eu fosse de Classe A e estivesse no Mundo das Trevas novamente.

Consegui fazer o antídoto e dei aos dois jovens. Aquela erva conseguia retardar o efeito de qualquer veneno porque paralisava totalmente a vítima por algumas horas, fazendo parecer que estava morta.

Quando o rapaz acordou, joguei nele o pólen da flor onírica. Essa flor não tem poder para sugerir novas memórias, mas apaga as lembranças de forma seletiva.

— Esqueça que algum dia tenha ido ao bairro boêmio, que tenha conhecido alguém chamada Harumi, e esqueça qualquer sentimento que tenha nutrido por ela.

O rapaz Pierre voltou para casa e nunca mais soube dele.

Como o veneno estava no corpo de Harumi por mais tempo, fiquei com ela por mais dois dias, quando soube de sua história, muito parecida com a da kiyohime. Quando ela estava curada, levei-a para sua terra natal. Quis lhe dar o pólen da flor onírica, mas fui impedido.

— É melhor não. Prefiro conservar essa lembrança para não repetir o erro de ficar obcecada novamente com o amor e me tornar tão vingativa ao não ser correspondida. Além disso, preciso inventar uma boa desculpa agora, não é?

— Você ficará com traumas. Isso não será bom.

— De forma alguma. Me lembrarei sempre de você, que foi meu anjo.

— Se você me conhecesse melhor, saberia que estou mais para demônio.

— E por que me salvou?

— Não fiz por você. Fiz porque seria melhor para mim.

— Se quiser pensar assim, que seja.

Harumi falou sorrindo, mas logo ficou séria e completou:

— Eu queria te dar um presente de agradecimento, mas como não tenho nada de material, te dou um conselho: evite ao máximo cometer o meu erro de não aceitar ser amado. Foi assim que me tornei amarga e uma hospedeira perfeita para a kiyohime.

Ela novamente sorriu num adeus silencioso e seguiu seu caminho.

Se eu forçasse ela a inalar o pólen, ela poderia reviver o antigo amor não-correspondido, e isso poderia virar um ciclo vicioso. Era melhor deixar como estava.

Voltei ao Mundo das Trevas e passei a evitar tudo relacionado ao Mundo Espiritual e ao Mundo dos Humanos, até que um dia Shunju me encontrou e me caçou. E o resto vocês já sabem.

“Não é necessário revelar que amor nunca tinha sido minha prioridade, mas após conhecer Harumi, preferi acatar sua sugestão. E para piorar, depois conheci Maia, que quase foi morta. Não vou me tornar vítima e nem permitirei que alguém o seja por minha causa”.

Kurama terminou o relato com o semblante pensativo e amargo, mas ao notar os olhares sérios de seus amigos, amenizou a expressão com um sorriso.

Todos ficaram calados observando o jovem de cabelos vermelhos, sem saber se diziam palavras de consolo ou de admiração. Mas, todos corresponderam ao sorriso, apoiando Kurama e o seu feito.

Botan achou que o ruivo ainda escondia alguma coisa, mas antes que falasse algo, Genkai tomou a frente:

— A história acabou, mas nem todos foram felizes para sempre. Que azar o de vocês! A chuva continua. E o treino também vai prosseguir.

Com exceção de Hiei e Kurama, o desânimo com a notícia foi geral.

 

 



 

 

Espero que tenha gostado de ler essa singela história.

  

Algumas palavras usadas nessa história e seus significados:

 

*Nunchaku: arma que consiste em dois bastões pequenos conectados por um cordão ou uma corrente.



*Artemísia: também conhecida como losna, absinto e erva-de-são-joão, entre outros nomes; tem várias propriedades medicinais, mas também pode provocar alucinações e outros efeitos colaterais conforme o uso empregado.


*Absinto: também conhecido como Fada Verde, é uma bebida destilada feita da losna. Anis, funcho e outras ervas também podem entrar na composição. Foi criado e utilizado primeiramente como remédio pelo Dr. Pierre Ordinaire, um médico francês que morava em Couvet, na Suíça, por volta de 1792. O excesso de absinto pode causar, além de alucinações, também convulsões, hiperatividade, tremores e fraqueza muscular. Alguns artistas que já usaram absinto: Paul Verlaine, Arthur Rimbaud e Van Gogh.



*Kiyohime: youkai-serpente, com o corpo sendo metade mulher, metade serpente; já fora humana, mas, após ser rejeitada, enlouqueceu; em seu desejo de vingança, se transformou em youkai.

*Shuriken: É a lâmina que se atira. São chamadas assim todas as armas de arremesso e pode ser coberta de veneno. Entre as formas de Shuriken, a estrela é chamada de Shaken.

*Sai: Uma espécie de punhal asiático com três ramos que permite picar, mas não cortar. Sua origem vem de uma ferramenta agrícola para plantar arroz ou para colheita de frutas. O Sai é geralmente empunhado em pares e um dos ramos pode ser usado como arma de arremesso.

 



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